POR BÁRBARA VETOS
Depois de algumas lavagens e uso esporádico, uma roupa de baixa qualidade pode não ser mais utilizável – ou, pelo menos, passa a ser desconsiderada por boa parte dos consumidores. Mas não é porque aquela peça foi descartada, que ela teve seu fim. Tecidos podem demorar até 400 anos para se decompor, a depender do seu material. É o caso do poliéster, derivado do petróleo. Já pensou que um pedaço de pano que durou apenas três meses no seu guarda-roupa pode ter uma vida mais longa que a sua no planeta?
Não é exagero. A indústria da moda é a segunda mais poluente do mundo, apenas atrás da indústria petrolífera, segundo o relatório Pulse of The Fashion Industry, da Global Fashion Agenda e de The Boston Consulting Group. Mais de 92 milhões de toneladas de resíduos têxteis são descartados anualmente. A estimativa aponta para um crescimento desse número nos próximos anos, gerando mais de 130 milhões de toneladas anuais até 2030. Um impacto ambiental que se estende a várias etapas da cadeia.
A produção de roupas gera entre 2% e 8% do volume global de emissões de carbono. Já o tingimento têxtil é o maior poluidor de fontes de água no mundo, de acordo com o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma).
Um panorama que se complica cada vez mais com a intensificação de modelos como o fast fashion ou o ultra fast fashion. Produção em excesso, consumo acelerado, baixa qualidade e exploração da mão de obra. O resultado: descarte indevido e comprometimento do meio ambiente.
“O cenário se agrava porque muitas peças são produzidas e não há uma preocupação se elas vão ser vendidas ou não”, explica Francisca Dantas, professora-pesquisadora associada na Universidade de São Paulo e presidente do Instituto Sustentabilidade Têxtil e Moda. Na dinâmica do fast fashion, as roupas beiram o descartável – peças são substituídas a todo momento. Segundo levantamento da ShareCloth, a indústria de moda produz 150 bilhões de peças anualmente em todo o mundo. Pelo menos 30% delas jamais serão vendidas – sendo incineradas ou descartadas de outras formas indevidas – e outro terço sai das lojas com desconto.
De retalho em retalho
Uma realidade palpável nos principais centros têxteis da cidade de São Paulo. O bairro do Brás, sozinho, é responsável por gerar 45 toneladas de resíduos todos os dias – o que equivale a 16 caminhões de lixo lotados. No Bom Retiro, 12 toneladas são coletadas cotidianamente. Os dados são do relatório Fios da Moda, desenvolvido pelo Instituto Modefica e da Fundação Getulio Vargas. As perdas de tecido podem chegar a 20% de todo o material usado nas fábricas. Esse percentual é totalmente descartado e, na maioria das vezes, vai parar em lixões.
De acordo com o residômetro têxtil do Instituto Sustentabilidade Têxtil e Moda (Sustexmoda), desde 2017 foram mais de 90 mil toneladas de resquícios têxteis acumulados nos aterros sanitários apenas na cidade de São Paulo. No Brasil, de 170 mil toneladas de roupas produzidas anualmente, só 20% são recicladas ou reaproveitadas, segundo o guia prático Moda sustentável, do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae).
Francisca Dantas explica que o desperdício é fruto de um erro de design. A correção pode ser feita ainda na fase de planejamento do produto ou com a geração de um novo subproduto. Isso permite que aquela matéria-prima volte ao processo produtivo e não seja descartada de forma inadequada.
300 hectares
da região são ocupados por roupas descartadas de forma indevida
Uma sombra no deserto
O Atacama é um dos principais símbolos do descarte incorreto de roupas. Conhecido por ser um dos desertos mais altos e secos do mundo, ao longo dos últimos 15 anos o cartão-postal chileno tem sido alvo de degradações ambientais e acumula cerca de 60 mil toneladas de resíduos têxteis todos os anos.
A montanha de roupas ocupa 300 hectares da região: é tão grande que pode ser vista do espaço. O lugar é considerado um grande cemitério a céu aberto – com peças vindas dos Estados Unidos, da Europa e da Ásia –, fruto do descaso coletivo perante o futuro do planeta.
“Falar do Deserto do Atacama é falar sobre a exploração do mal dos países de primeiro mundo, que consomem e depois descartam seus lixos nos países mais pobres, e a falta de respeito com os países no entorno”, analisa Dantas.
Como forma de atrair a atenção internacional e promover conscientização sobre os impactos ambientais, a ONG Desierto Vestido, em parceria com a Artplan, Fashion Revolution, Instituto Febre, e com produção da Sugarcane Filmes, desenvolveu o Atacama Fashion Week 2024. O desfile contou com a utilização de peças que foram descartadas no deserto e, por meio das mãos de produtores locais, ganharam um novo significado graças a técnicas de reaproveitamento do upcycling.
Para Fernanda Simon, diretora executiva do Instituto Fashion Revolution Brasil, a indústria da moda escancara o racismo ambiental. “O descarte de roupas traz impactos também sociais. Quando essas peças vêm parar nos países do Sul, elas impactam comunidades, muitas vezes, em situação de vulnerabilidade.” Nesse processo que já dura anos, ninguém é responsabilizado e a pilha só aumenta.
Dantas explica que, em aterros sanitários, é comum que os descartes da indústria têxtil fiquem misturados com comida. Se, nesse processo, a fibra sujar, não é mais possível voltar a peça para a economia circular – é preciso esperar a degradação ambiental de forma natural. No entanto, esse não é o caso do Atacama. “Precisaríamos fazer um grande trabalho de segregação de produtos e separação de fibras para fazer com que aquelas roupas voltassem para um processo produtivo circular e tivessem um novo uso.”
Desafios do cenário
Nesse sentido, o papel das empresas é fundamental, principalmente na questão de transparência. No entanto, o Índice de Transparência da Moda Brasil (ITMB), do Instituto Fashion Revolution Brasil, revela que grandes marcas do setor ainda estão muito aquém quando o tema é sustentabilidade.
Entre as 60 empresas analisadas com base em seus compromissos com questões socioambientais, apenas seis pontuaram acima de 60% no quesito transparência: quase metade (48%) pontuou abaixo de 10% e 16 obtiveram nota zero. “Dentro da moda, a sustentabilidade vem ganhando espaço de uma forma rasa. Não vejo o setor realmente conseguindo desenvolver práticas, processos, metas e políticas em prol de um desenvolvimento mais sustentável de uma forma concreta”, avalia Simon.
O modelo atual de produção valoriza o hiperconsumo e uma cultura de descarte. Os estímulos afetam diferentes faixas etárias e classes sociais, mas o foco, segundo Dantas, não deve estar no consumidor e, sim, nas marcas. “O consumidor de baixa renda, muitas vezes, está tendo a oportunidade de comprar aquele produto pela primeira vez, porque agora o preço é acessível”, explica. “Não dá para colocar a culpa nele.”
Para a professora da USP, é preciso rever esses processos e é importante que as marcas se conscientizem sobre o tempo e o valor de cada etapa na indústria. “Não tem como pensarmos em fazer bem-feito, com respeito pela natureza e pelos seres humanos, nessa velocidade que se produz hoje em dia”, complementa Simon. Isso não condiz com a realidade do planeta.

Revista ESG Insights nº 1 – Moda e sustentabilidade
Pra que tanta roupa? – Em meio a uma encruzilhada, a indústria tenta se reinventar
Planeta descartado – Lógica do fast fashion incentiva uma cultura de hiperconsumo e descarte: elementos incompatíveis com o futuro do meio ambiente
Escravos da moda – Do outro lado do mundo, ou em uma esquina perto de você, o trabalho forçado é usado para produzir os itens do seu armário
A um clique do consumo – Crescimento do comércio on-line estimula vendas por impulso e eleva participação do setor de moda no PIB
Um lookinho por segundo – TikTok impulsiona tendências no fast fashion e favorece o consumo exacerbado em busca da microssaciedade
Reinventando o futuro – Alternativas ao fast fashion visam garantir sustentabilidade e dignidade nas relações humanas
Germes de segunda mão – Roupas de brechó podem estar cheias de micro-organismos; veja o que é preciso saber
Afundando nas sobras – No dumpster diving, descarte de roupas feito pelas lojas tem outro destino: o guarda-roupa

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